A Sputnik Brasil conversou com dois especialistas sobre os entraves no setor, o potencial desse modal de transporte e o que precisa ser feito para que o Brasil volte a andar nos trilhos.
O embaixador da Rússia no Brasil, Aleksei Labetsky, e o secretário-executivo do Ministério da Infraestrutura do Brasil, Marcelo Sampaio, participaram, por videoconferência, de uma reunião para apresentar projetos brasileiros para investidores russos.
O evento, que ocorreu em 19 de agosto, contou com a presença de representantes das maiores empresas e organizações russas e focou em oportunidades nos setores portuários e ferroviários. Em particular, os representantes do Ministério da Infraestrutura falaram sobre a construção da ferrovia Ferrogrão (EF-170), que promete expandir a malha ferroviária e impulsionar o escoamento de grãos do Centro-Oeste pelos portos do Norte.
Também na semana passada, o Senado Federal debateu o novo Marco Legal das Ferrovias, que reorganiza as regras do setor e permite novos formatos para a atração de investimentos privados para esse modal de transporte.
O projeto prevê a adoção do sistema de licença para a exploração das ferrovias, e não mais o de concessão. O relator do projeto, senador Jean Paul Prates (PT-RN), afirma que o texto está pronto para ser votado pelo plenário, uma vez que o tema foi amplamente discutido com o governo e com os setores envolvidos, e “considera que sua aprovação permitirá novos investimentos e uma maior concorrência no transporte ferroviário brasileiro”, relata a agência Senado.
A Sputnik Brasil conversou com dois especialistas sobre os entraves no setor, o potencial desse modal de transporte e o que precisa ser feito para que o Brasil volte a andar nos trilhos: Marcus Quintella, diretor da FGV Transportes, e engenheiro José Manoel Ferreira Gonçalves, presidente da Frente de Volta pelas Ferrovias (Ferrofrente).
Brasil: grande e inoperante
O Brasil conta com aproximadamente 30 mil quilômetros de ferrovias, um volume muito inferior ao necessário para um país de dimensões continentais, com 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Para piorar, de acordo com Marcus Quintella, só estão operando atualmente metade, ou seja, apenas cerca de 15 mil quilômetros estão efetivamente em operação, o restante está subtilizado ou abandonado.
“O país transporta muito fortemente por rodovia […] chega a 65% do nosso transporte […] enquanto a ferrovia tem menos de 20%, e desses, 80% é minério. Temos uma carência muito forte da expansão da malha ferroviária”, contextualiza Quintella.
José Manoel Ferreira Gonçalves evidencia algumas das vantagens de transportar cargas em trens e não quase que exclusivamente por caminhões, como ocorre no Brasil: ganho de tempo, uma vez que não há congestionamento nas vias, segurança, porque risco de falha do motorista é bastante reduzido, alto desempenho, já que um trem pode transportar o equivalente a 300 carretas, e eficácia energética.
“O trem polui de quatro a seis vezes menos que o caminhão, e o barco polui de seis a dez vezes menos […]. Com seu pleno uso, enormes tonelagens de gases de efeito estufa deixariam de ser emitidos e com isso reduziríamos a abissal pressão do aumento das concentrações atmosféricas desses gases que, além de atacar a saúde humana e a natureza, agravam o desequilíbrio sistêmico e planetário provocando eventos climáticos mais severos e perigosos”, argumenta Gonçalves.
O diretor da FGV Transportes acrescenta que só 12% das rodovias brasileiras são pavimentadas e, mesmo considerando as vias asfaltadas, 60% são consideradas regular, ruins ou péssimas.
Projetos emperrados
A ferrovia Norte-Sul (EF-151) foi pensada para ser a espinha dorsal do sistema ferroviário brasileiro, facilitando o escoamento da produção e barateando custos do transporte de carga. O projeto, que prevê 4.155 quilômetros de extensão, interligando terminais portuários das regiões Norte e Sudeste, passando pelo Centro-Oeste, começou a ser discutido em 1985, durante o governo do presidente José Sarney (1985-1990), e está muito longe de ser concluído.
“Isso é uma questão orçamentária, de recursos que o país nunca teve para esse forte investimento e também associada a questões políticas, estratégicas […] falta planejamento, falta foco em uma visão sistemática do que o país precisava ter”, lamenta Quintella.
O diretor da FGV Transportes sublinha que é preciso um planejamento apolítico e apartidário, de Estado, para dar continuidade a um projeto, porque demora muito tempo para terminar uma ferrovia.
“Você não faz uma ferrovia em um mandato de presidente da República. Pode fazer trechos pequenos […]. Por isso, muitas vezes governos não investem em ferrovias, porque sabem que não vão inaugurar aquela ferrovia, não vão concluir aquele projeto, isso politicamente é muito ruim.”
Outro grande projeto que ainda não foi concluído é a ferrovia Transnordestina (EF-232 e EF-116), que começou na década de 1990 e deve ligar o município de Eliseu Martins, no sul do Piauí, aos portos de Suape, em Pernambuco e Pecém, no Ceará. Com uma extensão de 1.753 quilômetros, a obra já custou R$ 5,4 bilhões e apenas metade das obras foram concluídas.
Gonçalves destaca dois outros projetos que estão sendo discutidos atualmente: a Ferrogrão e a ferrovia shortline.
“Do ponto de vista de transporte de passageiros está sendo discutido o shortline, um transporte de passageiros em distâncias menores. Por exemplo, São Paulo-Campinas, São Paulo-Jundiaí, São Paulo-São José dos Campos, que são cidades importantes no estado”, explica.
O presidente da Ferrofrente acredita que o Brasil precisa e deve ter transporte de passageiros em cima de trilhos. “É inaceitável que um país do tamanho do nosso, continental como esse, não transporte pessoas”, lamenta.
Já a Ferrogrão vem sendo discutida há mais de quatro anos e é muito aguardada pelo setor do agronegócio. O valor estimado do investimento é de R$ 12 bilhões. Os recursos serão injetados pela iniciativa privada e o prazo de concessão é de 69 anos.
“A Ferrogrão sai de uma cidade chamada Sorriso, em Mato Grosso, que é um importante estado produtor de soja no Brasil, para levar até ao norte, em uma cidade chamada Miritituba, no Pará, para que a mercadoria saia pelo rio Tapajós e atinja o oceano Atlântico, que fica mais perto da Europa.”
Mas Gonçalves frisa que o Estado brasileiro precisa melhorar sua imagem junto aos investidores para conseguir captar capital e cita um exemplo que ocorreu há alguns anos.
“Os russos estavam interessados na ferrovia Norte-Sul, em um trecho de cerca de 800 quilômetros que ligava Palmas, no Tocantins, a Goiânia, em Goiás. Quando os russos vieram, eles perceberam que não estava definido de forma clara, devido à falta de uma política pública transparente, como é que ia funcionar o chamado direito de passagem. Nós teríamos um operador ferroviário único […] [ou uma] operação através de operadores independentes? […]. Isso não ficou claro e os russos, que não são tontos, voltaram para casa e não fizeram o investimento que se esperava porque existiam riscos”, conta.
Gonçalves acrescenta que há muita insegurança jurídica no Brasil e que é preciso credibilidade. “[A credibilidade] está cada vez mais em falta. Com esse governo que nós estamos e com a falta de um projeto de Estado, nós não temos a principal ferramenta para você atrair investimentos, que é a credibilidade”, sentencia.
Marcus Quintella faz coro, afirmando que o país precisa se restabelecer economicamente para ter força financeira para investir e que atualmente o Brasil possui graves problemas tributários e de equilíbrio fiscal, o que impossibilita margem para grandes investimentos.
“O investidor privado quer projetos rentáveis, que dê retorno do capital investido. O investidor privado não vai fazer o papel do Estado de fazer estruturação de ferrovia. Quem tem que estruturar região, todo o desbravamento do país é o governo, como em qualquer lugar do mundo”, alerta.
Da importância de equilibrar a matriz de transportes
Os especialistas são categóricos na importância de investir nas ferrovias do país. O diretor da FGV Transportes salienta que com boas ferrovias podemos transportar grandes distâncias e grandes quantidades com um custo menor e com um tempo menor, com segurança operacional melhor.
“Você teria condições melhores de competitividade no cenário nacional e internacional”, garante, acrescentando que isso favoreceria toda a cadeia logística. Gonçalves complementa:
“A logística tem absorvido cerca de 15% do PIB [Produto Interno Bruto], enquanto no mundo mais desenvolvido e organizado não tem ultrapassado os 10%. Em termos brasileiros essa diferença representa 100 bilhões de reais ao ano, que ao fim e ao cabo acaba repassada ao preço dos produtos transportados e das passagens. Não é, portanto, um prejuízo para o governo, mas sim para o cidadão.”
O presidente da Ferrofrente continua: “Precisamos modernizar, ampliar, organizar, integrar, garantir modicidade tarifária, dar mais segurança e conforto aos passageiros e custos competitivos nos deslocamentos dentro do país, despoluindo, desburocratizando, humanizando o caótico sistema de transporte de cargas, gerando economia de escala, reduzindo o preço dos alimentos que chegam à mesa dos trabalhadores, das famílias brasileiras. Por outro lado, uma tal providência, aumentaria nossa capacidade de competir nos mercados do exterior, enriquecendo assim toda a nação”.
Os especialistas concordam que as decisões políticas precisam ser tomadas pensando no longo prazo. Quintella argumenta que o Ministério da Infraestrutura está no caminho certo.
“O que está sendo feito hoje, independentemente de qualquer viés político, é tecnicamente correto […]. O Ministério da Infraestrutura está fazendo um trabalho dentro das suas condições e está fazendo um trabalho excelente, com a ideia de política de Estado, tem feito um trabalho para antecipar os contratos ferroviários atuais, as concessões, para poder garantir investimento nos próximos 20 anos, 30 anos. Isso é fundamental.”
José Manoel Ferreira Gonçalves, por sua vez, afirma que há um problema estrutural e um problema cultural, que só vai mudar com educação para cidadania e para política. Nesse sentido, ele defende o trabalho à frente da Ferrofrente.
“O importante é conscientizar as gerações futuras. Isso estamos conseguindo. Temos uma linha editorial com livros que a gente publica com a história das ferrovias. Uma coisa que se fez no Brasil foi acabar com a história da ferrovia e nós estamos resgatando essa história. A história ferroviária do Brasil é muito bonita. Como a história ferroviária da Rússia. Vamos contar como foi feita a Transiberiana, a luta que foi, olha o orgulho que dá para o povo russo. Temos que voltar a ter orgulho de nossas ferrovias”, conclui.