A multa é resultado de abandono de trechos de estradas de ferro da FCA, administrada pela VLI, em Minas Gerais
A Ferrovia Centro-Atlântica se comprometeu com o governo federal na semana passada a pagar uma multa de R$ 1,2 bilhão por ter abandonado ferrovias em Minas, no Rio e em São Paulo. Há possibilidade de que esses recursos sejam aplicados na ampliação do metrô de Belo Horizonte, como o próprio ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, chegou a cogitar. No entanto, a briga pelo dinheiro promete ser acirrada. Representantes de cidades mineiras, reunidos em Ubá, na Zona da Mata, criticaram a possível destinação exclusiva da verba à expansão do metrô da capital.
Prefeituras e movimentos em favor do transporte ferroviário, reunidos no Fórum Cultural de Ubá, se colocaram contra a destinação e disseram que seria injusto a concentração da indenização em investimentos no trem metropolitano de BH. Dessa forma, eles querem que a multa financie também outros projetos no estado e no Brasil. “Sempre tem alguém de olho nesses recursos, para não serem encaminhados ao seu destino natural, onde foram retiradas as linhas”, disse Edson Teixeira Filho (DEM), prefeito de Ubá. A linha abandonada pela FCA tem 65% da extensão em Minas Gerais.
Participaram do encontro o pró-reitor da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Taciano Silva, o engenheiro ferroviário Virgílio Furtado, diretor da organização não governamental Trem, André Tenuta, o coordenador da Associação Fluminense de Preservação Ferroviária, Antônio Pastori, e o presidente da Ferro Frente, José Manoel Gonçalves, que elencaram motivos para a verba não ser aplicada integralmente no metrô de BH. Também presente na reunião, o deputado estadual João Leite (PSDB) tratou a questão com cautela por uma série de motivos. Entre elas, uma decisão a ser tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na próxima quarta-feira, sobre a constitucionalidade do investimento cruzado.
O investimento cruzado permite que os recursos obtidos com a multa aplicada à FCA sejam destinados ao metrô e que os ganhos com a renovação antecipada de concessões da malha mineira financiem investimentos em outros estados. João Leite, apesar de cauteloso, acredita que a multa seja investida também nas ferrovias das cidades que requisitam o investimento. “Não tem como ser contra o metrô no Barreiro, por exemplo, mas podemos recuperar a linha mineira. Todo o minério retirado sai em rodovias, e é carga de ferrovia. O prejuízo às rodovias é enorme, esse minério passa por dentro de cidades modestas e se perde muito dinheiro com esse carregamento via rodovias. Vejo coerência nisso”, disse.
A FCA se comprometeu a pagar uma multa de R$ 1,2 bilhão em 60 parcelas, atualizadas pelo IPCA, a partir de 31 de janeiro do ano que vem. Nos três primeiros anos, as mensalidades a serem quitadas custarão R$ 26,7 milhões. Nos dois últimos anos, o valor das parcelas está estipulado em R$ 10 milhões mensais. Segundo as cláusulas do acordo, os recursos serão empregados em estudos, obras, recuperação, desenvolvimento ou implantação de infraestrutura ligada ao aperfeiçoamento da política de transportes, no âmbito do setor ferroviário, inclusive mobilidade urbana.
A multa é resultado de abandono de trechos de estradas de ferro da FCA, administrada pela VLI, em Minas Gerais, que vão do município de Sabará, na Região Metropolitana, a Cataguases, na Zona da Mata, correspondente a 65% de toda extensão abandonada pela empresa. A bancada fluminense também tem interesse em parte dos recursos, pois a ferrovia percorre uma área de 20% do estado. O restante está em território paulista.
Em 25 de novembro, o deputado federal Diego Andrade (PSD), coordenador da bancada mineira na Câmara dos Deputados, disse que existe um compromisso do ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, de que esse dinheiro seria reservado para o metrô de Belo Horizonte. “São recursos que também estão sendo disputados pela bancada do Rio de Janeiro. Mas, como foi feito o compromisso do ministro Tarcísio, e existe uma grande mobilização da bancada mineira, esperamos assegurar esses recursos assim que eles chegarem aos cofres da União”.
Na última quinta-feira, em encontro com prefeitos e representantes de cidades da Região Metropolitana de BH, o governador Romeu Zema disse que está nos seus planos melhorar a mobilidade na região. Antes mesmo de ter sido fechado o acordo entre o Governo Federal e a VLI, ele destacou a importância dos recursos para a capital. Dois dias antes, Zema se reuniu com representantes da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) para conhecer detalhes do trecho da linha 2 do metrô.
Até o fechamento deste texto, na noite desta segunda-feira (23/03), o Brasil contabilizava 34 mortos e 1.891 infectados pelo novo coronavírus, a Covid-19. O País, de dimensões continentais, precisa de uma logística de transporte inteligente com intermodalidade para assegurar que a circulação de mercadorias para o mercado interno e para a exportação não sofra interrupções. Nesse sentido, conversamos com o engenheiro e presidente da Frente Nacional pela Volta das Ferrovias (FerroFrente), José Manoel Ferreira Gonçalves, especialista na área.
Para ele, num momento de crise como a atual, percebe-se a importância de projetos logísticos que atendam ao interesse coletivo, e não apenas o de alguns grupos econômicos. É o que vemos, afirma ele, com o modal ferroviário. “Estamos nas mãos de algumas empresas que têm o poder de decidir o que passa ou não em cima dos trilhos”, critica. Gonçalves observa que “o Brasil tem dimensões continentais, mas assim mesmo não temos ferrovias que transportem cargas gerais. Quando fala em cargas gerais me refiro a tudo que se produz, de uma caneta, um remédio a um alimento, eletrodomésticos etc. Isso reduziria o valor desses produtos, inclusive”.
Os poucos grupos que detêm as concessões ferroviárias querem os trilhos para transportar produtos mais vantajosos, principalmente para a exportação, afirma o especialista. “Vou dar um exemplo: somente de 2% a 2,5% dos contêineres que trazem cargas gerais, no caso para exportação, são trazidas através de trilhos para o Porto de Santos, no litoral paulista, o resto vai em cima de caminhões. Essa situação se repete no País inteiro.”
Isso mostra, observa ele, que as ferrovias brasileiras não são usadas para dar apoio à indústria nacional. E o que temos hoje, relaciona, são ferrovias que transportam minério de ferro, soja, milho e açúcar, a grande maioria para a exportação.
Monopólio
Para mudar esse cenário, aponta o presidente da FerroFrente, é necessário “romper esse monopólio que coloca, nas mãos de poucos, o poder de decidir o que vai ou não em cima dos trilhos. Temos duas ou três grandes empresas que monopolizam de maneira absurda o transporte ferroviário, uma dela é a Rumo, do Grupo Cosan, que transporta açúcar para o Porto de Santos e está querendo ganhar, antecipadamente, mais 37 anos de concessão para transportar o que ela quer, no caso, açúcar, milho e soja.” E completa: “Não temos nada contra o porquinho da China que vai ser alimentado pelo farelo de soja que é exportado pelo Porto de Santos, mas não é só isso que importa ao Brasil. Importa também levar alimentação e outros produtos mais baratos às famílias brasileiras.”
Outro exemplo, afirma, se dá entre os estado do Rio de Janeiro e São Paulo, “onde a MRS transporta minério de ferro, porque não tem interessa nenhum em transportar passageiro. Ou seja, duas grandes capitais e metrópoles brasileiras não têm conexão de pessoas pelo modal ferroviário. Precisamos romper esse monopólio criminoso e absurdo garantindo a poucos a decisão do que deve ou não passar pelos trilhos”.
Para ele, diante do enfrentamento à pandemia do novo coronavírus, a Covid-19, pode-se comprometer o abastecimento, “uma situação que poderia ser minimizada se tivéssemos trens, hidrovias e transporte inteligente por caminhões”. Ele exemplifica: “Uma composição média pode significar de 200 a 300 caminhões de carga pesada. Cada vagão equivale a dois ou três caminhões, cada um com trinta toneladas.”
Ainda dentro da logística de transporte, Gonçalves salienta a importância da intermodalidade, “ela precisa ser praticada, ela é fundamental”. “Precisamos ter mais transporte em cima de barcaça onde houver hidrovias, nas ferrovias, usar o caminhão de forma inteligente. E tudo isso requer centros de concentração de carga na origem e de distribuição na recepção dessas cargas. Precisamos pensar nos interesses coletivos da sociedade brasileira.”